quarta-feira, 23 de novembro de 2005



Sabes...

eu vejo em ti um poço de sentidos... oculto... tapado com uma grande tábua rasa confundida...

Sabes...

eu vejo em ti mil possibilidades multiplicadas por outras mil que desconheço, que não consigo sequer avistar!

Sabes...

quando me deito ao teu lado, e te olho o rosto parado e quieto vejo o tumulto das águas (lá dentro incendiadas de raiva) água quase a secar...

... e a tez branca de medo... gotículas de água na tua testa sonâmbulamente agitada

sabes?...

Sabes... quando te vejo encostar a mão sobre o peito pareces querer agarrá-lo, esmagá-lo, trocá-lo de sítio, de posição... e...

sabes...

quando toco por fim a minha mão na tua sinto-a fugida, largada, perdida...

sabes...

quando te encostas nas minhas costas, deitado...

o corpo já perdido tocante, pedindo quente... posição fetal... o teu braço sobre mim...

sabes...

quase nunca fazes isso...

sabes?...

...tenho tanto quente para te dar...

deixa cair a tábua!!

deixa-me mergulhar no teu poço!!!

mergulhar... sabes?...

no teu poço... sabes?...

... mesmo que não saibas ao certo...

sabes?...

que te amo...

sabes ...

mesmo que tábua continue lá... sabes...

... no poço... no mais fundo de ti...

(foto: bogdan jarocki)

sexta-feira, 18 de novembro de 2005


Sou assombrada!

Todos os que cá entram fogem lívidos de medo...

...mas não saem de cá!

(2003)


(foto: viktor ivanovski)

Às vezes não sei que idade tenho...

tenho a vaga ideia de que nasci há séculos... não porque me sinta velha mas porque não sei que sinta...

relembram-me a passagem dos anos sob o pretexto de formas... e não sei que forma tenho...

relembram-me a ideia do tempo e não sei de que tempo falam...

relembram-me a morte da vida mas não consigo ter a vida sem morte... (de mim talvez...)
27/4/05 13:24


(foto: angelle)

Não quero que me abraces...

Já disse que não quero que me abraces!!..

Porque as trevas habitadas são os corpos tocantes, as harpas violentas do desejo, o rasgo de luz momentâneo que se quer luz eterna...

Já disse que não quero que me abraces...

Não quero que me abraces se não prolongares em mim a sede, a fome e o sangue que me corre nas veias latejantes

Não quero que me abraces se não quiseres abrir as portas e atravessar de novo o grito que é todo teu, que é todo meu (e que eu queria secretamente nosso).

Não quero que me abraces se não quiseres arrancar as linhas das mãos (das nossas mãos confusas) arranca-las à força como cordas de harpas, só para podermos tocar uma última melodia... soturna... irremediávelmente imersa na morte secreta de cada um de nós...

Não quero que me abraces...
Já disse que não quero que me abraces!!

(...porque só quero abraçar-te!! nada mais...)
30/4/05 11:47

(foto: angelle)

E para que querias tu os meus olhos encastrados nos mapas da memória se não lhes notarias o brilho...

Há muito que te espero de mãos frias e agora vejo que nem as notas em cima das tuas, descansadas no leme à espera de rumo.

Bebo o vinho para que notes o quente, para que olhes para o farol no momento certo em que se vira e nos tinge as pupilas atordoando-nos de uma luz logo mergulhada em treva... nessas alturas sinto sempre que o farol parou no movimento intacto de se fazer notar de um outro lado que não o nosso.

Estou cansada de esperar...

pedes-me uma última vez que me cale porque sempre ouviste dizer que no silêncio a carne murmura mais forte qual maré em tumulto à espera de ter paz.

Nunca te disse uma só palavra, não conheces o tom da minha voz, e por isso nunca aprendeste a língua do meu país.

Digo-te novamente em silêncio que estou cansada de esperar...

Esperar pela carne que não cede.
... esperar pelo vinho que não embriaga nem aquece.

Estou farta de esperar por ti!
Estou farta de ti!
farta!!!(meu amor)

e o porto de chegada é sempre longe... dos mares que não são de cá!

e os marinheiros novos... esses... estão sempre no alto-mar, desfazendo as rosas que outrora me trouxeste...
13/5/05 12:49


(foto: cig harvey)

quinta-feira, 17 de novembro de 2005

acerca dos demónios


G. - "é perigoso amestrar demónios. é mais perigoso ainda não os amestrar."

S. - os demónios são uma "espécie" que anseia pela extinção... e que completamente extinta nos torna verdadeiros demónios de nós próprios... (outros demónios)

um demónio pode desdobrar-se, dar origem a outros...
um demónio pode de facto extinguir-se, ou pode nascer sem darmos conta...

pode ter nome ou ser inominável...

podemos amar demónios ou odiar demónios em nós...

pode até ser uma espécie de escuridão camuflada de luz...
ou uma luz camuflada de escuridão...

os demónios sempre existirão na fragilidade preemente de querermos ser anjos...

os demónios estão presentes em todos aqueles que querem extinguir-se a si próprios para se alcançarem plenamente...

Sem nos apercebermos vamos alimentando estes demónios cuidadosamente, lentamente...
consumindo-nos da própria forma de os alimentar...

até termos a coragem de os olhar de frente, de os reconhecer...
de olhar para uma espécie de "reflexo na água" que se desfaz mal o tocamos

já não somos nós...mas somos nós ainda...
somos nós diferentes...
somos nós mais completos porque deixámos de ser...
porque matámos os demónios de nós...
3/5/05 10:02


(foto: arnauld joubin)

segunda-feira, 14 de novembro de 2005


"Não somos feitos para ser criaturas de luz, mas para dar significado à escuridão."

in, www.ribeiranegra.blogspot.com


(foto: angelica)

ROT


"Para que não te percas, leva um dos meus olhos.
Que esta corda, que tu pintaste de vermelho, há-de atar-me à carruagem de ferro, à carruagem - a da corda - que desgovernada atravessa este inverno tão lento, tão de ferro.
Não há sereias, os perigos estão mais próximos.
Ouves? ouves como o vento insiste nas portas?

O que os teus dedos desenharam sobre o vidro eu não apaguei. E não apaguei o perfume. E não apaguei a canção que nunca levámos até ao fim.
Ouves? ouves como ainda cantam os degraus?

Vermelho, vermelho tudo o que nos faz parar a meio das avenidas!

Pensei que houvesse um lugar para escavar, uma ferramenta arcaica para trabalhar os materiais inflamáveis. Vermelho, vermelho! Garganta em chamas! Tudos nos chegou à custa de pele e víscera, papel e víscera, noite e víscera.
Todas as cartas importantes debaixo das camas, todas as canções importantes chegaram a meio do sono geral, todos os sinos se fundiram à meia-noite e à meia-noite escorreram incandescentes sobre muros brancos. Vermelho, lava, vermelho!

Ouves? ouves como não param de soar as doze badaladas - surdas, mínimas?

E agora tu apontas e dizes: luna calante. E agora eu canto e tu dizes: voce calante. Vermelho, ah essas avenidas que nos descem pelos braços e desastres nos dedos! Toca-me, toca-me incandescente, toca-me delírio de metal, toca-me pelos corpos que arrefecem sem regresso, toca-me, vermelho, vermelho!

Ouves? ouves como te toco e me tocas quando os leopardos correm de olhos acesos?

Está aqui o revólver. São balas de vidro para as tua mãos. Não te arrependas.

Ouves? ouves como continua o fuzilamento das sombras?

Mas tu és o Sol! E eu, o espaço e o calendário.
Vermelho, vermelhos.

Ouves? ouves a canção que não acaba nunca?"


in, "A prisão e paixão de Egon Shiele" de Vasco Gato

(foto: filipe lamas)

"a imagem deve dar luz por ela própria
os corpos têm a sua própria luz que gastam na vida
ardem, não são iluminados"

Egon Schiele

(foto:angelle)

sexta-feira, 4 de novembro de 2005


é o meu nome que flutuante circula por aí nos mares revoltos...

chamo-me o não saber como me chamo...

chamo-me o que te disserem as águas...

chamo-me os restos de mim que encontrares nas margens...

chamo-me a parte inteira que o mar levou...


(foto:alberto monteiro)