quinta-feira, 27 de abril de 2006

o esterco do mundo


Tenho amigos que rezam a Simone Weil
Há muitos anos reparo em Flannery O'Connor

Rezar deve ser como essas coisas
que dizemos a alguém que dorme
temos e não temos esperança alguma
só a beleza pode descer para salvar-nos
quando as barreiras levantadas
permitirem
às imagens, aos ruídos, aos espúrios sedimentos
integrar o magnífico
cortejo sobre os escombros

Os orantes são mendigos de última hora
remexem profundamente através do vazio
até que neles
o vazio deflagre

S. Paulo explica-o na Primeira Carta aos Coríntios,
"até agora somos o esterco do mundo"
citação que Flannery trazia à cabeceira

josé tolentino mendonça
in, a estrada branca
assírio e alvim 2005

(foto: elena retfalvi, "anatomy of surrender")

sexta-feira, 21 de abril de 2006


aqueles que um dia me percorreram
jamais encontraram a minha face...











(foto: katia chausheva - "untitled")

quinta-feira, 13 de abril de 2006

dias do demónio


Existem dias em que o demónio anda por aí à solta
em que os minutos se sucedem ao toque de golpes de faca
esquartejamento massivo
medo envolvido pelo manto do pânico
porvir incerto

endemoninhados ficamos, de olhos baços, à espera de respostas...

nesses dias normalmente acordo já angustiada
pressentimento de um calar breve
(o quebrado que há em mim retorna)

arrasto-me em toque de súplica...

nada sei
nada espero
nada sou

cansada
corro ao final do dia de encontro à casa branca (a única que sempre me acolhe)
fecho a porta num rasgo (como se estivesse alguém do outro lado a empurrá-la)
acendo velas e incensos
deito-me em posição fetal e rezo uma oração em jeito de ladaínha
chorando golfadas soluçantes até ficar com o corpo dormente

(se parar, os demónios vêm, e eu sempre vivi sozinha!)

aguardo o raiar do dia já sem força
(penso sempre- talvez um dia eu renasça com ele, talvez...)




há dias em que o "mal" anda por aí à solta
há dias a que eu chamo sempre "dias do demónio"!



(foto: katia chausheva - "demon days")

quarta-feira, 12 de abril de 2006


"April is the cruellest month"

disseste-o tu...
com esta cor e esta densidade que fica intacta...

em mim ficou o abismo
de sentir ao longe
uma chaga que é toda tua...








(foto:katia chausheva-"april")

terça-feira, 11 de abril de 2006

insignificantes


"(...) os insignificantes flutuam ao vento contínuo de Deus"

















in, "a estrada branca"
josé tolentino mendonça
assírio e alvim, 2005

(foto: alberto monteiro "mergulho")

segunda-feira, 10 de abril de 2006

Dobrando o tempo, dobrando uma esquina



What sorrow
beside your sadness
and what beauty


W.C.WILLIAMS

Demasiadas coisas receberam tuas pálpebras
a atenção consumiu-te as pestanas
Demasiados caminhos te repetiram
apertada, perseguida.

A cidade dos séculos te devora
para ti entrevê, sonho e destruição
de luzes e chuvas, lágrimas já senis
sobre a rapariga que passa
febril, indomável, dobrando o tempo, dobrando uma esquina.

Regressa! Gritam os velhos de Nossa Senhora do Pranto,
a ronda da piscina de Siloé
com os cães, os híbridos, os espectros
que não se conhecem mas que tu sabes
enraizados contigo
na glute azul do asfalto
e crentes em tua flor que arde, branca --

porque todos vivemos de estrelas extintas.

cristina campo
"o passo do adeus"
assírio e alvim, 2002
tradução: josé tolentino mendonça

(foto: alberto monteiro
série - "o vazio também é lugar")