quinta-feira, 2 de julho de 2009

pena que já foram...

" estou em plena luta e muito mais perto do que se chama de pobre vitória humana do que você, mas é vitória. eu já poderia ter você com o meu corpo e minha alma. esperarei nem que sejam anos que você também tenha corpo-alma para amar. nós ainda somos moços, podemos perder algum tempo sem perder a vida inteira.mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. não temos amado acima de todas as coisas. não temos aceite o que não se entende porque não queremos passar por tolos. temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. temos construído catedrais, e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmo construímos, tememos que sejam armadilhas. não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que diga: tens medo. temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. não temos usado a palavra amor para não termos que reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível. muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que a nossa indiferença é angústia disfarçada. temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. falar no que realmente importa é considerado uma gafe. não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer 'pelo menos não fui tolo' e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. temos sorrido em público do que não sorriríamos se estivessemos sozinhos. temos chamado de fraqueza nossa candura. temo-nos temido (...) e a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia."






clarice lispector
in, uma aprendizagem ou o livro dos prazeres
relógio de água, 1999

1 comentário:

M.E. disse...

é caso para dizer :
"tá vendo isso? é um instante.. pfiuu... passou...."