sexta-feira, 23 de setembro de 2005

o dia em que morreste para te sentires viva


Vigiávamo-nos mutuamente...

eu para que vivesses
a mãe para que continuasses viva
tu para que te deixássemos morrer

fingiste dormir

querias dormir eternamente

acreditámos que dormias só por instantes

levantaste-te em surdina
escolheste a hora da troca
(eu e a mãe fazíamos turnos para te vigiar...tu sabias...)
calculaste a hora!

nesse dia cheguei tarde
nesse dia a mãe partiu cedo
(mentiras com que nos enganamos ainda hoje)

para ti era tarde demais para ser cedo

(ainda sentimos a culpa de não saber se devíamos chegar ou partir)

escolheste aquela linha... um caminho...
(tinhas escolhido vários e nunca resultara - será porque te vigiámos sempre?)

encostaste o pescoço junto ao ferro...

(deves ter sentido o chegar da morte
deves ter sentido o chegar da vida)

o comboio passou...

descobrimos que se chega sempre tarde
e que o longe é sempre perto demais

lembro-me de um punhado de terra que te lancei na campa
e todos os dias vejo na mãe a lágrima que nunca cessa!

(foto: luís ferreira)

1 comentário:

rota_aérea disse...

Uau...que exposição tão forte de sentimentos, que questionar tão profundo e que libertação do outro, amor pelo outro...quando o mundo nos foge das mãos...olhamos a dor, e nas questões esboçamos na lágrima a paz de um rosto que vê e acolhe...brilhante...