segunda-feira, 30 de junho de 2008


o lugar que sou é redondo II, originally uploaded by sophiarui.






não consigo localizar-me no meu corpo
as chamas do incêndio extinto
não consigo encarnar-me
saber de que cor é a saliva ou quais as entranhas
onde o lugar do poema toca mais fundo

só sei cuspir palavras tenras
vomitar as letras ainda por emprenhar
no mais concâvo dos sons
e saber que o cheiro que sai de mim
é igual ao hálito de uma fera que nunca se domesticou...








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domingo, 29 de junho de 2008


Someone on the phone, originally uploaded by dreaminfinity.

tocou
eu inflamei a voz no "tou" perguntado
e ouvi o teu "humm..."
do outro lado
(gostava quando fazias esse som)
sabia que eras tu mas ainda assim
disseste que te tinhas enganado no número
que as teclas eram vidros afiados
e que não podias ligar-me novamente
pois não tinhas luvas de aço que te protegessem
das palavras enroladas no fio
antes do bocal

era noite
e desde aí o telefone nunca mais tocou...

quarta-feira, 25 de junho de 2008

domingo, 22 de junho de 2008

homem - peixe:




há em ti uma escama enterrada que não consegue sair
há no peito uma espinha atravessada que não consegue partir
há na alma carne branda dilacerada que não se consegue esvair

e existem águas que te querem
e escolhes a margem com o medo de te ires


ahhh peixe morno que queres da vida?
água estagnada, empedernida?
disso não há aqui!



aqui há vida a pulsar
mortes por desenterrar
e um mar forte e bravio
onde me lanço corpo frio
para sempre ressuscitar!!







(estória de sempre abraçar... sabor (a)mar...)








(pescado nesta onda
foto:lilya corneli - "patchwork series")

sábado, 21 de junho de 2008


"a sobrevivência da espécie humana pode passar por coisas tão absurdas como fazer teatro."















joão garcia miguel
(foto:murat akay - "theater 2")







(é disto que se trata... apenas... sobreviver a isto que se chama mundo...)

quarta-feira, 18 de junho de 2008

la merde (este post em francês seria belíssimo)


para que conste:


sim estou na merda
sim estou na merda muitas vezes
sim de certa forma sou eu que escolho estar na merda
sim é uma escolha merdosa
sim é uma merda estar na merda

sim mandei-te à merda
sim mandei-te ir quando eu não estivesse lá para que não tivesses oportunidade de ir
sim odeio-me porque sou sempre mal entendida
sim odeio-me porque não me sei fazer entender sem te mandar à merda
sim e fico com remorsos sempre que o faço
sim e sempre que o faço ainda fico mais na merda






merda merda merda merda merda merda






sim amo tracinho te
sim não sei amar tracinho te
sim também não sabes amar tracinho me
sim...


sim sou mulher
sim és homem
sim é uma merda haver sempre um abismo intransponível perante isto


sim... e o que é que eu faço com isto agora?
sim, isto que sinto...

sim mando isto tudo à merda?
sim explica-me como se faz...







(dizem que começar as frases por "sim" é sinal de optimismo na vida...
uauuuuu!!! que merda de optimismo pode haver quando se está na merda?)






(foto:lilya corneli - "galery III")

terça-feira, 17 de junho de 2008


VAI À MERDA!!!

de preferência num dia em que eu não esteja lá!


(como vês são poucas as opções de visitar o fedor de estar vivo
sítios merdosos não são para meninos bonitos
são para quem tem de lá estar!)










(foto:michal mentel - "scream")

era uma boneca desarticulada
plástico breve não vale quase nada

veio da fábrica já com defeito
colocada na caixa errada sem instruções de jeito

não mexe alguns dos seus membros vitais
não consegue ser como as bonecas demais

distancia-se das barbies
vem quebrada de início

boneca desarticulada não faz bom serviço

na sua colecção não existem "bonecos-par"
nem nenhum técnico que a possa salvar

só se fosse um boneco
quebrado no mesmo sítio
feito do mesmo plástico
ou que quebrasse o feitiço

(teria que ter um buraco no peito
teria que ter o mesmo defeito)

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o menino achou-lhe piada e pela montra a viu
comprou-a por pechincha – barata lhe saiu

mexeu-lhe, achou-a estranha mas fez birra para a ter
e depois de a ter feito sua pareceu-me ouvir-lhe dizer:


“esta tem defeito – a mim não me interessa
vou devolvê-la já, o mais rápido e depressa!”






na loja de que falo não aceitam devoluções
foi barata demais, não vale as confusões

por ser mais fácil ao menino
colocou-a no lixo:

(pode ter quantas quiser…
lixo abonecado é como outro lixo qualquer)



mas antes de a deitar fora
partiu-a aos pedacinhos
boneca estilhaçada
quebrada aos miudinhos

depois do sucedido
o menino a cantar
foi assobiando na rua
uma cantiga p’lo ar:

“corpo encerrado na terra de ninguém
plástico com defeito não articula bem
boneca quebrada não vale um vintém
não há meninos que lhe queiram bem

boneca quebrada não vale um vintém
não há sequer bonecos que lhe queiram bem ”














(foto: laurente orseau - "square dolls")

domingo, 15 de junho de 2008

when our mouths are filled with uninvited tongues of others*


não, não estava tão branco
e ao contrário da imagem
eu descia a rua desgrenhada em direcção a ti
ficaste no carro parado como se soubesses que eu iria
como se... não soubesses...

(terra de não-saber esta em que caminhamos)

mas não... também não caminhávamos
nem estávamos parados
nem nada... daqui... entendes?

era uma espécie de espanto
uma espécie de mancha
de assombro, de negro
era uma espécie sem espécie
dois corpos sem nome

carregamos mortos nos bolsos
sem nunca podermos despir os casacos
sem nunca chegarmos a nós
mortos em bolsos sem fundo...




chamas-te vento ou ventania
eu posso chamar-me acácia ou sophia...
nada






chorei...
sabes que choro sempre que te encontro
e que choro também sempre quando partes



(de quantas chegadas e partidas precisaremos para desaprender de chorar?)



os soluços voltaram na madrugada já sem ti
contigo no corpo sem corpo

os soluços voltaram até adormecer de cansaço



de manhã
a tua camisa intacta por debaixo da almofada
nem uma gota de sangue para relembrar o crime











(nunca me perdoarei por não te saber fundir...)

























(foto:torse tabletop)
*cataracts - andrew bird

sábado, 14 de junho de 2008

















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o que me custa:
fico sempre com o teu cheiro na roupa
mas não na pele...






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(foto:black mirror - "july")

quinta-feira, 12 de junho de 2008



há a fissura da janela
e de como ela anseia o branco do gesso
mesmo que nele não desapareçam os grumos
timidez do pó a entrar por ela dentro...










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(foto: sophiarui - "madeira com nós por dentro")

a espera












(foto:sophiarui - "o que se pode esperar da espera?")

quarta-feira, 11 de junho de 2008


a maior parte das vezes sou só isto...


uma sombra a vaguear na parte mais escura da casa










(foto: sophiarui - "c'est la main qui fait de l'ombre")
















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os sulcos insuflavam na vida
a timidez de uma tágide louca
confusão de brilho e pó
no marulhar pérfido das palavras


sepulcro de um hostiário breve
tocado por dedos de calar




o triunfo das cinzas...







(foto:sophiarui - "engolir os sulcos"
trabalho sobre quadro de carlos bruno)















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(foto:sophiarui - "fechada para obras")

segunda-feira, 9 de junho de 2008


tenho necessidade de usar brincos
como se fossem espanta-espíritos




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o som secreto de uma ventania invísivel







(foto:sophiarui - "le charme n'est pas comme ça")

eu bafejava a tua boca de palavras
eu entendia os pássaros que sem penas tremiam na madrugada
eu entrevia os campos o estruturar das estrelas que sem brilho
concorriam na hora nocturna com o poder das sombras

eu era um gesto
na lufada de ar que nunca circulou




eu no vazio
o infecto falhar de um corpo nu






(foto:sophiarui)

canção das crianças mortas



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(...) e a abrir imensas caixas de fotografias, era perdidamente tarde e tudo me chegava ao fundo difuso de um poço. eu comecei vagamente a sentir que algum sonho que estivera encalhado iniciava algures um lento regresso. e, por fim, disse: "é como as crianças mortas". dizemos as coisas e a seguir reparamos que já as fizemos. elas já se fizeram.


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"duas cegonhas pousaram na terra vermelha
dos barros macios de lodo na beira do rio
duas cegonhas paradas
o céu no recorte das árvores
é o céu de uma manhã que nasce na luz de outubro

cortada de gritos de pássaros e de geada
piou o último mocho
as cegonhas guardam o rio
as águas debaixo do céu
há anos que descem tranquilos sobre a imagem

do corpo dos afogados na cama de limos
as rãs mergulham sem medo, tocou um sino
voou uma garça ruiva
nunca nos esqueceremos
os dedos brancos os olhos brancos o sorriso
sem dor e sem idade no vidro da corrente

contra o primeiro sol no frio limpo das areias

que docemente lhe correm pelas mãos azuis
no escuro de cada noite
rebentam braços de hera
vales fundos de granito
na dobra de cada sono
voltaremos de novo a olhar-lhes os lábios
na pele transparente sobre o rolar dos seixos




nunca nos esqueceremos
peixes lentos nos cabelos
das crianças mortas




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(texto: clara pinto correia
imagem: sophiarui sobre foto de josé afonso furtado)

o senhor do autocarro tinha-me avisado que era um dia em que não devia ter saído de casa.

o senhor do autocarro abrandou a marcha rogando-me pragas por eu não ter trocos com que pagar o bilhete.

o senhor do autocarro avisou-me.

e eu ali entre o restauradores e o rossio pensava que em 10 minutos chegaria a belém para o tocar da harpa. 10 foram exactamente os minutos, eles mesmos, em que cheguei atrasada.

tinha comprado o bilhete no dia anterior, o último de um espectáculo que esgotou depois de mim...

hars é a poética da harpa que não se chega a poder tocar
música por desvendar
espectáculo onde não se preenche o lugar

bilhete inteiro que nunca se chega a rasgar...








o senhor do autocarro avisou-me.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

às vezes tenho uma vida tão real que é irreal
às vezes só tenho acesso à vida real na vida virtual
e vezes há em que pessoas virtuais me dão mundos tão reais que arrepiam

emma louise nome real tão verdadeiro como o outro
mulher de rubores nocturnos no engano das primeiras notas
fuga numa noite igual à minha


6ªf foi noite de fuga
na imersão intacta de um aquário

domingo, 1 de junho de 2008

dia da criança


hoje é o meu dia - dizia eu
e depois diziam-me a mim que eu já era grande e que me deixasse disso
ser grande era bom - pensava eu - e punha-me com ar de grande na minha cadeira grande como se o tempo tivesse passado por mim mais rápido do que a outras crianças
tinha a mesma idade que elas mas na verdade eu era grande como os grandes em volta
eu tinha que suportar a dor porque já era grande
eu tinha que ser a mana grande da mana que antes era maior que eu
eu tinha que ser a mana grande da minha mana pequena
e depois também tinha que ser grande com a mãe para que ela não chorasse
e com o pai para que fosse forte e mantivesse a casa
eu tinha que ser tão grande tão grande que conseguia ser grande sem o ser...
eu conseguia não ser
eu conseguia...

passaram os anos e hoje continua a ser o meu dia
porque a cadeira grande se partiu
porque já não tenho mana grande
e a mana pequena cresceu
porque descobri que a mãe continua a chorar mesmo que eu seja grande
e que continua a chorar mesmo se eu fôr maior que grande (impossível modo de ser - eu não sabia)
e também sei que o pai nunca manteve a casa pois eram as mulheres-meninas-grandes que o faziam...

hoje é o meu dia - digo eu passado tantos anos
e dizem-me novamente - já és grande demais para isso...







(foto:dr.feel good - "untitled")