segunda-feira, 9 de junho de 2008

canção das crianças mortas



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(...) e a abrir imensas caixas de fotografias, era perdidamente tarde e tudo me chegava ao fundo difuso de um poço. eu comecei vagamente a sentir que algum sonho que estivera encalhado iniciava algures um lento regresso. e, por fim, disse: "é como as crianças mortas". dizemos as coisas e a seguir reparamos que já as fizemos. elas já se fizeram.


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"duas cegonhas pousaram na terra vermelha
dos barros macios de lodo na beira do rio
duas cegonhas paradas
o céu no recorte das árvores
é o céu de uma manhã que nasce na luz de outubro

cortada de gritos de pássaros e de geada
piou o último mocho
as cegonhas guardam o rio
as águas debaixo do céu
há anos que descem tranquilos sobre a imagem

do corpo dos afogados na cama de limos
as rãs mergulham sem medo, tocou um sino
voou uma garça ruiva
nunca nos esqueceremos
os dedos brancos os olhos brancos o sorriso
sem dor e sem idade no vidro da corrente

contra o primeiro sol no frio limpo das areias

que docemente lhe correm pelas mãos azuis
no escuro de cada noite
rebentam braços de hera
vales fundos de granito
na dobra de cada sono
voltaremos de novo a olhar-lhes os lábios
na pele transparente sobre o rolar dos seixos




nunca nos esqueceremos
peixes lentos nos cabelos
das crianças mortas




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(texto: clara pinto correia
imagem: sophiarui sobre foto de josé afonso furtado)

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