sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

dias de calar


às vezes penso que seria bom sentir a reclusão das horas...

já pensei muitas vezes tornar-me monja
daquelas despojadas do mais ínfimo bem
descalças no chão mais frio...




o silêncio atrai-me como me atraem todas as coisas inatingíveis
como me atraiem todas as coisas indizíveis

penso muitas vezes nisso
em ser monja
principalmente quando estou assim como hoje...
frágil... prestes a quebrar...



quem comigo passa algumas horas
sabe bem do quanto as minhas palavras podem ser lâminas
gumes rasgando a pele
do quanto podem vir a ser ferida

basta que alguém me diga uma sílaba no momento exacto de detonar
basta que eu tente chegar ao fundo, em queda, ao abismo de mim...



as palavras...
os dias do calar falhado
as palavras...

a saída de som com que as pronuncio
a modulação lacerada pela boca
o impacto de cada letra no corpo em frente
alvo fácil para onde direcciono a minha raiva...

palavras
frias... cortantes...

o choro evaporado de as ter dito assim... a seco...



é premente que existam dias de calar...
para que ninguém saia ferido
para que só eu possa morrer-me


calar é tentar preencher a medida certa da minha ferida
(haverá calar suficiente para isso?)



talvez se eu fosse monja...
silenciosa...
talvez...

nos dias em que consigo o silêncio das palavras
elas transformam-se em facas suicídas
vísceras atingidas
pelas setas do som
grito inaudível
esventrado



palavras...

era tão bom cala-las definitivamente...
era tão bom serem suficientes para me morrerem todas cá dentro...




os dias de calar são metrónomos tangíveis por sombras opacas
os dias de calar são cada vez mais longos e esguios
difíceis de conquistar no ruído da casa



ouço os sons
o barulho da rotina morna
apetece-me ficar quieta, parada, aqui no quarto pequeno...
fumo do incenso
a invadir o mínimo de espaço

para ser monja
talvez precisasse de me desapegar deste ícone
desta vela acesa ao final do dia...

para ser monja
talvez precisasse de abrir apenas esta mão teimosamente fechada



não teria muito a perder...
mas tenho medo...


de perder tudo o que já não tenho
de perder o que nunca tive


o teu cheiro
a pele de alguém
a respiração quente nas poucas vezes que te aninhas ao meu lado nesta cama...
e...


seria capaz de muita coisa
percorrer um país árido por um abraço
atravessar o deserto para ver um pôr-do-sol
reduzir-me a cinza em troca de um beijo

sim... seria capaz de muita coisa menos
desse silêncio parado
desse caminho caminhado
desse "cumprir" saciado


talvez nunca me venha a tornar monja
por não ter essa coragem
de assumir o choro na forma de um corpo
até ao último dia
derradeiro dia no final do som...



mas há dias de calar
são necessários para que ninguém saia ferido...


é por isso que às vezes não falo quando chego a casa
fecho à chave a porta do quarto pequeno
e fico assim, na posição reduzida
mãos agarradas às pernas magras
joelhos dobrados


feto crescido demais para poder nascer



fico assim de olhos abertos sem conseguir adormecer
a vela acesa consumindo o ar
oxigénio interior a esvair-se




talvez se eu fosse monja eu tivesse sítio em que reclinar esta cabeça
talvez se eu fosse monja eu conseguisse dormir o sono justo...
silêncio calado...


a reclusão das horas...









(foto:joannés ceyrat - "un arbre")

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

chance


"walk in silence
walk away in silence
see the danger
always danger
endless talking
life rebuilding
don't walk away
face the danger

walk in silence
don't walk away in silence
see the danger
always danger
rules are broken
false emotions
don't walk away

people like you find it easy
always in tune
walking on air
they're hunting in packs
by the rivers
throught the streets
it may happen soon
then maybe you'll care
walk away
walk away from danger

i'm just crossing the line
trying to get back
right where i was
back where i was
see me crossing the line
don't walk away



(ian curtis - 1ª versão de "atmosphere")


http://obsessedbythissong.blogspot.com/2007/12/atmosphere.html

terça-feira, 11 de dezembro de 2007


ontem à noite uma senhora contou-me uma história de olhos tristes
sentei-me numa das últimas filas da sala 3 do king
e fiquei a ver os gestos e os poemas
a tristeza que se foi e a que ainda resta


e a senhora sempre a contar uma história
que terminou aos 23
uma história que continua aos não sei quantos...

saí para a noite fria...

apeteceu-me caminhar
só um bocadinho
entre os prédios vazios da cidade parada

de roma a entrecampos
apeteceu-me fumar um cigarro sem lume
(nem sequer tenho já por onde arder)




apeteceu-me cantar uma "weeping song"
apeteceu-me contar que há outras histórias depois dos 23
as dos que ficam sempre com aqueles que se vão


se eu contasse...


mas hoje...
hoje é dia de calar...

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

poema dum funcionário cansado


"a noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com a vida às avessas a arder num quarto só

sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
débito e crédito débito e crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na conta de empregado
sou um funcionário cansado dum dia exemplar
porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

soletro velhas palavras generosas
flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música

são palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só"



(antónio ramos rosa
de, o grito claro - 1958)



(foto: gene laughter - "antique word processor")

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007


hoje pela manhã
esta estação parece-me igual a ontem à noite
algumas horas de distância e tudo igual

os comboios chegam e partem
e eu ando neles
como quem anda de barco
num alto-mar de trovoadas

na dormência acordada dos dias
vou deixando passar estações
vou acotovelando entradas
forçando saídas


(este comboio não tem destino
não pára aqui, já...porquê?)




esta estação pela manhã
parece-me igual a ontem à noite

parto cedo
chego tarde
nunca é de dia aqui


esta estação pela manhã
parece-me igual à noite



eu fiquei no cais de embarque à tua espera
passaram por mim todas as pessoas que te teriam acompanhado naquele comboio
no final de tudo
cais vazio

o revisor sai por fim
ombros pesados da viagem
caminha com a certeza refreada de capitão de um barco alvoraçado
de capitão que não teve a força de controlar as velas

caminha em direcção a mim como se viesse em recado


os olhos brilhantes de contenção
o silêncio quebrado de calar
entrega-me em mãos o teu bilhete obliterado







hoje pela manhã
esta estação parece-me igual à noite
alguns anos de distância e tudo igual











(foto:cédric friggeri- "train")

terça-feira, 4 de dezembro de 2007