sexta-feira, 7 de dezembro de 2007
poema dum funcionário cansado
"a noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com a vida às avessas a arder num quarto só
sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
débito e crédito débito e crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na conta de empregado
sou um funcionário cansado dum dia exemplar
porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
soletro velhas palavras generosas
flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
são palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só"
(antónio ramos rosa
de, o grito claro - 1958)
(foto: gene laughter - "antique word processor")
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