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nunca percebi grande coisa deste mundo
desde pequena que olho para as coisas
como se fossem lugares parados
sombras por abrir na mais alta escuridão
a minha mãe dizia-me que eu era uma criança calada
ensimesmada no mundo por vir
ficava quieta até à frente do aparelho
onde normalmente um homem dizia as notícias da última noite
nessa altura talvez eu ainda não soubesse o que era a noite
(talvez intuisse só que ela existia... por ali...)
sabia das sombras mais escuras da casa
de como eu as desafiava no pequeno corredor de volta ao quarto
- porque não acendes a luz filha?
- e se um dia não houver lâmpadas? nem velas mãe?e ela calava a minha escuridão com o toque de um dedo
não percebia que eu queria ver para além dali
daquela luz que me parecia mentida
fundida nas paredes do quarto
sombras forjadas à espera da manhã
desde pequena
eu queria atravessar o escuro
o lugar parado que ninguém queria atravessar
(o que haverá para além mãe?)e continuamente ela acendia a luz como se me guiasse
na ilusão que eu esquecesse as madrugadas mais fundas
onde ela intimamente me sabia acordada
embalava-me na noite com aquela lâmpada improvisada
como se me quisesse ocultar o mais puro segredo
como se me adiasse o destino
só por mais um tempo
nunca percebi grande coisa deste mundo
preso à ideia de liberdade
pacificado na mais funda guerra
que sufoca na luz
e perpassa as trevas como um alvo a abater
sim,conheço pouco do mundo...
viajo por dentro
onde nunca me pedem bilhete
já fui à china e ao japão
ao deserto e a veneza
já tive sede e fome
e sobrevivi quieta
no abismo de mim
viajei parada
como se andasse milhas
e a acalmia dos dias
é a tramutação da mais funda dor
agora sei o que é a noite
e a escuridão
e gosto da tristeza como se de uma irmã
os únicos passos que dei foram
nesse corredor pequeno da casa que me leva ao quarto
não consigo dormir perante a sombra mais escura
não consigo parar a dor por me mostrar tão além...
nunca percebi grande coisa deste mundo
e vou ficando por aqui parada
quieta como quando te fazia perguntas:
- o que haverá para além da noite mãe? (foto: marilia campos)