sexta-feira, 9 de novembro de 2007


será possível classificar a dor?
nomeá-la?

pergunto-te isto porque no outro dia lembro que choraste
porque não te dei um beijo
e disseste "és má!"
e isso magoou-me

e depois fiquei a pensar qual das dores seria a maior
a tua ou a minha?
qual das dores seria uma perda?

existirão dores maiores?
como se mede o tamanho da dor se o coração é tão pequeno?

então pensei que quando me disseram que alguém estava no céu
eu olhei para ele e era azul
e dessa vez não senti dor nenhuma
e acho até que vi um sorriso por detrás de uma nuvem
e na altura eu era pequenina e pensei que ir para o céu era uma coisa boa!
de sorrir!

mas quando desapareceste assim... da minha frente... eu tive medo e pavor e mágoa e raiva e pânico e todas as palavras com todas as letras que fizessem chorar
e estava de facto tão apavorada... tão sem nada e com tudo, que nem sequer consegui desfazer-me em água (que é coisa que faço com alguma facilidade até...)

olhei de novo para cima e choveu
e as gotas eram do tamanho de grandes lágrimas paradas
como se o inverno viesse para se instalar por dentro
como se já não houvesse mais estações no meu coração
como se nunca mais pudessem existir mais verões nem outonos...

(será que alguma vez te disse que gostava do outono?)

então comecei a classificar as dores
a dar-lhe nomes feios ou bonitos conforme a intensidade
a hierarquizá-los em crescendo de gemido:

magoar um joelho
a birra por um gelado
a perda do primeiro namorado
a primeira traição
...

e quando tu morreste pensei que só teria que te encaixar num destes patamares
que era fácil dar-te um nome e arrumar-te numa prateleira na minha vida...

foi aí que percebi que existem dores maiores
dores inclassificáveis
dores que, ainda que não queiramos, nos deixam escravos da própria dor
que se transformam numa camada de pele que passa a fazer parte de nós

quando morreste senti que outras mortes se seguiam
que nunca iria conseguir classificar... isto...

(percebi que já nunca mais te iria ver entendes?
o calor da pele... ficaste fria... e branca... tinham-me dito que o branco assusta e só percebi nessa altura porquê...)

também percebi sem entender que há certas dores que são um grito inteiro
dado ao relento daquela casa onde nunca poderemos entrar

percebi sem entender
que se houver uma hierarquia de dor
as dores maiores serão sempre aquelas que não têm nome...
serão sempre aquelas que invertem a ordem da natureza
são exactamente as que desordenam
as que nos fazem perder até aquilo que nunca tivémos

(descobri que nós não somos nossos entendes? e isso doi!)






quem perde um pai ou uma mãe é orfão
quem perde o companheiro ou companheira é viúvo


mas...
que nomes são estes?
onde estão?

quando partiste pensei que serias um acto isolado
que eu conseguiria apaziguar-te cá dentro
não ia morrer mais ninguém...

eu queria uma palavra para ti
(para que pudesse depositar nela tudo o que sinto entendes?)
como se a existência de uma palavra pudesse ser ela mesma o buraco onde te enterrar)

mas desde que partiste é ainda mais difícil
como se vivesse num mundo em que o meu alfabeto não coincide






procurei em vários dicionários de linguas estranhas até mas...
nunca consegui encontrar uma palavra para quem perde um irmão...
depois para a avó a mesma coisa...
e...

quem se segue afinal?

será que desde aí tenho que ver a morte todos os dias para te dizer que nunca acharei as palavras certas para descrever isto... aqui... cá dentro?...


e depois o pai... por um fio... tantas vezes...
vezes demais...

e vejo a mãe p.
a nossa mãe...

nunca ninguém conseguirá inventar um palavra para quem perde um filho
(essa sim, talvez seja a dor maior...)

envelheceu tanto... p.
envelheceram tanto
envelhecemos tanto p. tanto...

vês daí?... do céu?... há um céu?... de que cor?...






desde que partiste
continuo a ver muita gente morrer à minha frente todos os dias...aos bocadinhos... finos e lentos... e essa morte devagar não pára e consome...




depois da primeira morte há sempre outras...
e em todas as mortes é a nossa que se vai misturando também...


as dores maiores são inomináveis
por não terem espaço nem tempo que nelas possam caber

















"quem disse que o tempo aplacaria a minha dor?"







(foto:chuck inglefield - thoughts of mortality)

8 comentários:

Lautreamont disse...

Obrigado, babes... há muito tempo que não conseguia sentir um arrepio ao ler qualquer coisa... Que aperto... foi estranho agora, sabes? Desculpa, não posso chegar muito perto de entender, mas um pouco... Grande beijo!

Kisa disse...

«como se o inverno viesse para se instalar por dentro» (LINDO!) e como se o verão lá fora nunca chegasse para aplacar o frio...
como tu não sei a dor, e gostava de nunca a saber... chorei ao ler-te e acho que sei de onde vem a tua força!
um grande abraço daqui desta minha sombra!

Patrícia Evans disse...

estou aqui...estamos;)

bruno disse...

(...)

Terpsichore Diotima (lusitana combatente) disse...

Acabo de ''a'' descobrir, Sophia. Como devo chamá-la? Sophia está bem?

Antes de mais, os meus sentimentos.

Depois, timidamente...talvez goste de ver os meus últimos posts, que abordam a mortalidade e a imortalidade, embora abordem outros lados dessa passagem... mas abordam também o como poderá haver tanta mais luz nessa partida.


Gostei muito de a conhecer.

Voltarei.

Terpsichore Diotima (lusitana combatente) disse...

(oh, isso será no meu outro blog... mas não gosto de estar a fazer publicidade.) Se calhar já sabe qual é o meu outro blog... :)

bruno disse...

não, não sei.
(prazer)

Terpsichore Diotima (lusitana combatente) disse...

www.ailhadosamores.wordpress.com

É que na Google não resulta assinar com blog da wordpress, coisas assim. A Ilha é o meu blog central, digamos.

Cumprimentos