segunda-feira, 14 de novembro de 2005
ROT
"Para que não te percas, leva um dos meus olhos.
Que esta corda, que tu pintaste de vermelho, há-de atar-me à carruagem de ferro, à carruagem - a da corda - que desgovernada atravessa este inverno tão lento, tão de ferro.
Não há sereias, os perigos estão mais próximos.
Ouves? ouves como o vento insiste nas portas?
O que os teus dedos desenharam sobre o vidro eu não apaguei. E não apaguei o perfume. E não apaguei a canção que nunca levámos até ao fim.
Ouves? ouves como ainda cantam os degraus?
Vermelho, vermelho tudo o que nos faz parar a meio das avenidas!
Pensei que houvesse um lugar para escavar, uma ferramenta arcaica para trabalhar os materiais inflamáveis. Vermelho, vermelho! Garganta em chamas! Tudos nos chegou à custa de pele e víscera, papel e víscera, noite e víscera.
Todas as cartas importantes debaixo das camas, todas as canções importantes chegaram a meio do sono geral, todos os sinos se fundiram à meia-noite e à meia-noite escorreram incandescentes sobre muros brancos. Vermelho, lava, vermelho!
Ouves? ouves como não param de soar as doze badaladas - surdas, mínimas?
E agora tu apontas e dizes: luna calante. E agora eu canto e tu dizes: voce calante. Vermelho, ah essas avenidas que nos descem pelos braços e desastres nos dedos! Toca-me, toca-me incandescente, toca-me delírio de metal, toca-me pelos corpos que arrefecem sem regresso, toca-me, vermelho, vermelho!
Ouves? ouves como te toco e me tocas quando os leopardos correm de olhos acesos?
Está aqui o revólver. São balas de vidro para as tua mãos. Não te arrependas.
Ouves? ouves como continua o fuzilamento das sombras?
Mas tu és o Sol! E eu, o espaço e o calendário.
Vermelho, vermelhos.
Ouves? ouves a canção que não acaba nunca?"
in, "A prisão e paixão de Egon Shiele" de Vasco Gato
(foto: filipe lamas)
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