segunda-feira, 29 de maio de 2006


(epílogo)
"traz pela mão a sua própria derrota

quando entra na guerra do cenário
senta-a ao seu lado, a um flanco


o actor puxa então a palavra
com dedos frágeis e muito medo de nada
sai-lhe o sangue por inteiro sílaba a sílaba

depois de uma pausa imensa onde cabe o estrondo
e ele de olhos fechados, sempre de olhos fechados,
comprimindo o gesto todo do ar
para começar a dizer esta coisa tão dura
esta coisa ferida de ternura


uma a uma, as palavras

todos os rostos do mundo vêm ver o rosto do actor

ver como a sua boca é transparente
como ele abre o coração do silêncio
e se ergue desse chão minado
de abismo e vultos repentinos


o actor não tem nome
o actor jamais poderá ter nome

a sua vida é muda, secreta, inflamada


o actor mistura lágrima e sorriso

como se depois tudo fosse verdade

como se depois ele não soubesse mais

onde fica o riso e onde
pertence o choro


quieto agora o actor aproxima-se

o calor que se desprende do seu corpo

arrepia se o tocamos


e no entanto o seu pulso existe

o actor está sentado ao lado da derrota

porque a loucura é real junto dos homens

e as palavras ferem muito mais que o luar
este brilho que o actor propaga em redor

pousando camada a camada
numa grande solidão amarrotada

agora o actor recolhe as mãos

e elas lhe estremecem a intimidade

como se houvesse desaparecido o sítio de as ter
na qual é preciso andar como milimétrico cuidado

para não quebrar o vidro frágil da alma

o actor pega na derrota pela mão

e sai para fora dos lugares

suspenso num qualquer instante frio
onde só resta uma cama muito antiga

para depositar a sombra que fica

de tanta luz"

vasco gato
in" imo",2003
edições quasi


(foto: bereni
ka - "little washing")

quinta-feira, 25 de maio de 2006



"- tem cuidado!!! se varres os pés nunca mais te casas!!!"

um dia hei-de varrer tanto os pés
tanto,
tanto
e com tanta força!!

que eles ficarão bem presos à terra!
a escavar raízes fundas !!

já é tempo desta cabeça se deixar de ilusões!

(o branco é-me apenas a cor emprestada para permanecer lado a lado com as almas perdidas (irmãs minhas...muitas...)

não me apertes...
desaperta-me...



(foto:lilya corneli - "after")

quarta-feira, 24 de maio de 2006

uma vez visitei um campo de concentração na Bélgica
e das coisas que mais me ficaram na mente
não foram as salas, ou os objectos de tortura,
ou a energia ruim que lá se sentia

(lembro-me disso lembro, e era de arrepiar...
mas não é isso que mais retenho...)


lembro-me de um campo verde em volta
(quem não soubesse achá-lo-ia um local belo... e não deixa de o ser...
estranho sentir este...)


lembro-me sempre de umas traves de madeira grossas
espetadas no chão
no meio do verde
em fila

lembro-me de tocar nas traves
de sentir a madeira rugosa seca do sol
de envolver com a ponta dos meus dedos
cada sulco esculpido pelas balas
e de sentir um calafrio (vários)



às vezes
não sei bem porquê
surge a imagem de "uma eu" nesse campo
há muito tempo
talvez no início de outros tempos
talvez nem fosse eu,

outro alguém...

sozinha
amarrada a uma das estacas de madeira

alguém em frente a apontar uma arma

um olhar de pânico
a nudez do medo

vejo (quase sinto) cada bala a trespassar várias partes do corpo

em câmara lenta
muito devagarinho


o rasgar da pele
o sangue a esvair-se lentamente
num braço
numa mão
no ventre
no peito

as balas sucedem-se
várias
uma de cada vez (vêem-se lentas a penetrar cada parte do corpo frágil
- sim, tão frágil este corpo)


o filme passa devagar na minha mente
o filme passa devagar à minha frente

o corpo a contrair-se a cada bala
pendurado pelas mãos que o seguram
as golfadas de sangue a sairem (me) pela boca

o filme passa e eu estou de fora a ver-me no meu próprio filme
serei eu assim? outra vez...

imagino isto muitas vezes e não sei porquê
(nunca soube...)

as golfadas sucedem-se em vómitos compulsivos mas lentos
imagem sempre lenta


vermelho líquido no verde do campo
esguichos na trave de madeira rugosa
vejo a minha mão
- o eu de fora a ver-
a tocar o sangue ainda quente com a ponta dos dedos,
sangue nos sulcos da trave de madeira,
madeira ainda fresca...

(-foi há muito tempo não foi?
- não s.- foi agora!)


sob pano de fundo
o campo continua belo,
verde,
algumas flores brancas,
nevoeiro
e uma música de arrepiar que nunca soube reconhecer...
muito bela também...

imagino esta imagem muitas vezes
não percebo porque nunca cheguei a morrer na imagem que vejo

morro sempre que a vejo!

quinta-feira, 18 de maio de 2006

às vezes gostava de não ter intuição...


o silêncio é sempre mais verdadeiro que as palavras

(hoje as ruas parecem-me uma música de Arvo Part.)

sexta-feira, 12 de maio de 2006


pudesse eu dar-te um beijo e abraçar-te
nesta hora sôfrega que lenta passa para que pudessemos trocar de vida num segundo que fosse...

assumindo eu a noite e tu o dia conhecendo eu o abismo e tu o branco do lençol da infância perdida
que te devolvesse a parte inquebrável que em ti cedeu...













(foto: berenika "night and day")

quinta-feira, 11 de maio de 2006


Tocava-te como se tocam as árvores seculares que não podem ser entendidas
que não se podem sequer perscrutar
por entre a densa folhagem que as envolve

árvores de raízes fundas,
mais fundas que a humanidade
mais densas que o pensamento
mais negras que o interior da terra...

tocava-te para não mais conseguir entender-te
para não mais conseguir entender-me
para não mais querer chegar a sítio nenhum

tocava-te como quem toca uma história inventada
um livro inacabado
um caco de vidro lacerante

mergulho os dedos no interior da árvore
da seiva pegajosa à qual fico colada

fico sempre presa
eu que não tenho raízes

eu, aquela em quem o vento bate
como se o lhano em mim fosse um argumento adaptado
a todas as árvores
a todas as raízes
a todo o negro que a terra comporta

e olho-te agora sem te tocar...

o sangue em mim tem sempre alguma coisa de verde!
(quem disse que a cor é uma coisa fácil?)


(foto: katia chausheva "untitled")

estes são tempos de calar e rezar...





















"o teu silêncio, oh Deus, altera por completo os espaços"
josé tolentino mendonça

(foto: sabine leve)

segunda-feira, 8 de maio de 2006


Há pessoas que nasceram para serem felizes...

há pessoas que nasceram para serem.

(foto: katia chausheva - "out of time")