(epílogo)
"traz pela mão a sua própria derrota
quando entra na guerra do cenário
senta-a ao seu lado, a um flanco
o actor puxa então a palavra
com dedos frágeis e muito medo de nada
sai-lhe o sangue por inteiro sílaba a sílaba
depois de uma pausa imensa onde cabe o estrondo
e ele de olhos fechados, sempre de olhos fechados,
comprimindo o gesto todo do ar
para começar a dizer esta coisa tão dura
esta coisa ferida de ternura
uma a uma, as palavras
todos os rostos do mundo vêm ver o rosto do actor
ver como a sua boca é transparente
como ele abre o coração do silêncio
e se ergue desse chão minado
de abismo e vultos repentinos
o actor não tem nome
o actor jamais poderá ter nome
a sua vida é muda, secreta, inflamada
o actor mistura lágrima e sorriso
como se depois tudo fosse verdade
como se depois ele não soubesse mais
onde fica o riso e onde
pertence o choro
quieto agora o actor aproxima-se
o calor que se desprende do seu corpo
arrepia se o tocamos
e no entanto o seu pulso existe
o actor está sentado ao lado da derrota
porque a loucura é real junto dos homens
e as palavras ferem muito mais que o luar
este brilho que o actor propaga em redor
pousando camada a camada numa grande solidão amarrotada
agora o actor recolhe as mãos
e elas lhe estremecem a intimidade
como se houvesse desaparecido o sítio de as ter
na qual é preciso andar como milimétrico cuidado
para não quebrar o vidro frágil da alma
o actor pega na derrota pela mão
e sai para fora dos lugares
suspenso num qualquer instante frio
onde só resta uma cama muito antiga
para depositar a sombra que fica
de tanta luz"
vasco gato
in" imo",2003
edições quasi
(foto: berenika - "little washing")
in" imo",2003
edições quasi
(foto: berenika - "little washing")
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