quarta-feira, 24 de maio de 2006

uma vez visitei um campo de concentração na Bélgica
e das coisas que mais me ficaram na mente
não foram as salas, ou os objectos de tortura,
ou a energia ruim que lá se sentia

(lembro-me disso lembro, e era de arrepiar...
mas não é isso que mais retenho...)


lembro-me de um campo verde em volta
(quem não soubesse achá-lo-ia um local belo... e não deixa de o ser...
estranho sentir este...)


lembro-me sempre de umas traves de madeira grossas
espetadas no chão
no meio do verde
em fila

lembro-me de tocar nas traves
de sentir a madeira rugosa seca do sol
de envolver com a ponta dos meus dedos
cada sulco esculpido pelas balas
e de sentir um calafrio (vários)



às vezes
não sei bem porquê
surge a imagem de "uma eu" nesse campo
há muito tempo
talvez no início de outros tempos
talvez nem fosse eu,

outro alguém...

sozinha
amarrada a uma das estacas de madeira

alguém em frente a apontar uma arma

um olhar de pânico
a nudez do medo

vejo (quase sinto) cada bala a trespassar várias partes do corpo

em câmara lenta
muito devagarinho


o rasgar da pele
o sangue a esvair-se lentamente
num braço
numa mão
no ventre
no peito

as balas sucedem-se
várias
uma de cada vez (vêem-se lentas a penetrar cada parte do corpo frágil
- sim, tão frágil este corpo)


o filme passa devagar na minha mente
o filme passa devagar à minha frente

o corpo a contrair-se a cada bala
pendurado pelas mãos que o seguram
as golfadas de sangue a sairem (me) pela boca

o filme passa e eu estou de fora a ver-me no meu próprio filme
serei eu assim? outra vez...

imagino isto muitas vezes e não sei porquê
(nunca soube...)

as golfadas sucedem-se em vómitos compulsivos mas lentos
imagem sempre lenta


vermelho líquido no verde do campo
esguichos na trave de madeira rugosa
vejo a minha mão
- o eu de fora a ver-
a tocar o sangue ainda quente com a ponta dos dedos,
sangue nos sulcos da trave de madeira,
madeira ainda fresca...

(-foi há muito tempo não foi?
- não s.- foi agora!)


sob pano de fundo
o campo continua belo,
verde,
algumas flores brancas,
nevoeiro
e uma música de arrepiar que nunca soube reconhecer...
muito bela também...

imagino esta imagem muitas vezes
não percebo porque nunca cheguei a morrer na imagem que vejo

morro sempre que a vejo!

1 comentário:

CVJ disse...

Morremos sempre um pouco ao comtemplar o passado, e sobretudo imagens como essas.
Abraço.
Leonel