quarta-feira, 31 de janeiro de 2007


não, não me arrependo de nada...

mas não podia continuar a ser-te





não entendo o que aconteceu...

eu era forte, segura...
a minha entrada era a saída de muitos...



tu eras o reverso do meu espelhar
passavas ileso à multidão




se te encontrasse por aí na rua não daria pela tua presença, nem pelas tuas palavras compassadas a medo em murmúrios

não! nem sequer sentiria o teu cheiro...
(este que depois me ficou gravado na pele)

foi o teu tocar que me prendeu
foi o teu desejo que me inspirou

olhar baço cambiado em brilho
corpo frágil e faminto
dedos delgados cravados no mais obscuro de mim

levavas-me como uma âncora...
ao fundo
e eu deixava que as águas bravias me submergissem
lentamente...

saíamos de vez em quando juntos
fugidos da vida que tínhamos

escondidos
(ninguém podia saber...)


depois encontrámos aquela casa onde me fechavas
por dentro
(no mais dentro de mim)

por fora



sim, havia o mundo lá fora
mas isso - dizias - era um pormenor


e o pormenor foi-se tornando no meu maior objectivo
eu tinha que sair dali
eu tinha que sair de ti


no quarto onde me encerraste - o vazio
no quarto onde me encerraste - eu e tu
no quarto onde me encerraste -só eu a ser-te


do lado de fora da porta poderiam dizer que não havia ninguém

casa calma
onde entrava por vezes uma mulher e um homem
onde entrava várias vezes um homem

(onde estaria aquela mulher que entrou e nunca saiu?)

e tu entravas as vezes que querias - naquele quarto
e tu entravas as vezes que querias - em mim
e tu entravas sem me deixares sair

-deixa-me ir lá fora! - pedia-te

-só hoje! (ser eu em mim!)

tu gargalhavas sem palavras
como se soubesses que me detinhas
como se soubesses que ficarias para sempre, aqui...
que em ficaria para sempre ali







se olhassem para o meu corpo robusto
diriam que era eu a ferir-te

mas lá dentro, no quarto escuro
era eu a rosa a desfolhar
caule espinhoso,
onde cravavas as mãos já sem medo
na pele soluçante



dedos rasgados, os teus
nestes meus espinhos
assim partidos por dentro de ti

caule prenhe a quebrar
sangue exangue
seiva de nunca alimentar






a ferida que deixaste é o duelo
de ainda agora seres tu sempre
a seres-me
em vez de mim!



(foto: velislava "good doctors never leave a scar")

6 comentários:

Patrícia Evans disse...

...

Joana Guerra disse...

Sublime!

Yakunna disse...

Sem palavras... estás cada vez melhor!!

ps: ontem descarreguei de tal maneira, que hoje sinto-me sem energia!! :(

rota_aérea disse...

Parabéns linda...
estou profundamente comovida... sinto-te a chegar a uma grande planície...

abraço doce...

musalia disse...

Sophia

atendendo ao teu pedido: a pequena obra da qual retirei o excerto não foi escrita por Tolentino, é, antes, una tradução do latim, de pequenas orações litúrgicas sobre as lágrimas. tem um prefácio deste autor:

José Tolentino de Mendonça, 'A Sintaxe das Lágrimas' in O Dom das Lágrimas.

se necessitares mais alguma coisa, estou à tua inteira disposição. será um prazer:)

um beijo e grata pelas tuas palavras, sempre tão gentis.

moriana.

Susana Miguel disse...

as feridas...
há sempre uma ferida escondida
por debaixo da pele,
há sempre o quarto escuro
mesmo quando entra a claridade pelas janelas.

Um abraçinho
a entrar por dentro delas.