quarta-feira, 27 de agosto de 2008


o nosso quarto era a parte detonada da casa

tu contavas da noite aquilo que os meus olhos semi-cerrados nunca poderiam naquela idade ainda ver

tu contavas da noite a noite

eu ouvia e deixava que a água dos olhos se infiltrasse pela íris adentro e me percorresse os caminhos onde só as artérias se arrastam, até ao coração das coisas inomináveis

a mãe ficava em joelhos atrás da porta
quase que lhe aspirava a treva que se infiltrava pelas frestas da porta
quase que lhe sentia já o negro dos paramentos que a revestem

(até hoje)

tu falavas-me das flores que partiram os caules antes de serem colhidas
e perguntavas-me porque nasciam crianças já mortas nos seus canteiros

e era tudo tão estranho
que eu ficava em silêncio na esperança de que a manhã viesse depressa e eu pudesse ressuscitar-te com lençóis lavados

e depois, como as noites eram longas eu decidia quebrar o cume das horas acendendo a luz
dizia-te do céu azul, e do branco das nuvens
de como existiam pássaros cujas asas ainda não tinham sido cortadas

tudo para que esquecesses as sombras e as vozes que dizias sussurradas nos pequenos espaços em que paravas de falar

nessa altura eu era jovem, e tinha um ar jovem e pensava que isso era suficiente para vencer a morte
nessa altura eu pensava que morte era o nome de uma senhora sábia que morava na casa por detrás da avó

nessa altura o teu corpo estava já todo manchado de noite e eu não consegui perceber isso porque te confundi com sombra da parede do quarto detonado





A casa ruiu por fim
mas lembro-me agora que ainda te conseguiste despedir de mim com um beijo de boa noite

era já manhã quando o fizeste
a mãe tinha adormecido encostada à parede esculpida de humidades
e no soalho escuro
ao pé dela, nasceu uma planta que tem crescido ao sabor do sal





Se perguntasses por mim hoje dizia-te que mudei de casa e até de quarto

e a noite?
a noite...

Se perguntasses por ela dizia-te que continua lá
Que continua cá…

2 comentários:

CNS disse...

Belíssima esta casa, esta ruina, este nome de morte. Abri esta janela por acaso. Feliz acaso.

blue disse...

obrigada, sophiarui. voltarei a este teu lugar.