terça-feira, 19 de agosto de 2008

porque a minha revolução não tem nome...




(dedicado a todas as mulheres
em especial à minha mãe...)




“Ao longo da curva do globo terrestre há mulheres a levantar-se de madrugada, na escuridão que precede a luz, no lusco-fusco que antecede o nascer do sol; há mulheres a levantar-se mais cedo que os homens e que as crianças, para quebrar o gelo, acender o fogão, preparar a papa, o café, o arroz, para passar as calças, para fazer tranças, para tirar água do poço, para ferver a água para o chá, para preparar as crianças para ir para a escola, para colher os legumes e começar a caminhada para o mercado, para correr a apanhar o autocarro para o trabalho (…).

Eu não sei quando é que a maioria das mulheres dorme.

Nas grandes cidades, de madrugada, há mulheres que regressam a casa de fazer limpeza aos escritórios durante toda a noite, ou de encerar as enfermarias dos hospitais, ou de fazer a vigília aos velhos e aos doentes, assustados com a hora em que a morte virá cumprir a sua missão.
“(…) as mulheres passam horas a limpar pedras minúsculas e a escolher feijões, trigo, arroz; elas descascam ervilhas e estripam o peixe e esmagam as especiarias nos almofarizes. Elas compram ossos ou tripas no mercado e preparam sopas baratas e nutritivas. Elas remendam roupas até que estas já não tenham ponta por onde se lhes pegue. Elas… procuram… os mais baratos uniformes escolares, no maior número possível de prestações. Elas trocam velhas revistas por lavatórios de plástico e compram brinquedos e sapatos em segunda mão. Elas caminham longas distâncias para encontrar um novelo de algodão a um preço mais acessível.

É este o dia de trabalho que nunca mudou em nada, o trabalho feminino gratuito que significa a sobrevivência dos pobres.

Numa luz ténue eu vejo-a, vezes sem conta, o seu relógio interno empurrando-a da cama com os membros pesados e talvez doridos, com o seu bafo a bafejar vida ao seu fogão, à sua casa, à sua família, com a última amostra fria da noite no corpo, de encontro ao súbito sol nascente.

No meu mundo branco (…), tentaram convencer-me de que esta mulher – politizada por forças cruzadas – não pensa ou reflecte sobre a vida que leva. Que as suas ideias não são ideias reais como as de Karl Marx ou de Simone de Beauvoir. Que os seus cálculos, a sua filosofia espiritual, os seus dons para a lei e para a ética, que as suas decisões políticas de emergências diárias são meramente instintivas ou são reacções condicionadas. Que apenas certo tipo de pessoas pode formular teorias; que a mente branca instruída é capaz de formular o que quer que seja; que o feminismo branco de classe média pode ter conhecimentos em nome de ‘todas as mulheres’; que a formulação somente pode ser tomada a sério quando formulada por uma mente branca.

(…) eu, claro, preciso de sair da base e do centro dos meus sentimentos, mas com o sentido de correcção de que os meus sentimentos não são o centro do feminismo.
(…) fugir ou ignorar tal desafio significa apenas isolar o feminismo branco de outros grandes movimentos de autodeterminação e de justiça dentro dos quais e contra os quais as mulheres se definem.

Uma vez mais: Quem somos ‘nós’? (...)"










RICH, Adrienne (1984). Notas para uma política da localização. In MACEDO, Ana Gabriela (org.) (2002), Género, Identidade e Desejo – Antologia Crítica do Feminismo Contemporâneo. Lisboa: Edições Cotovia












(foto:katia chausheva - "sunday")

2 comentários:

Anónimo disse...

Grande recado!
Grande blog!
Parabéns - e sim, a nossa Revolução continua, todos os dias.
Assinado: Mulher, Mãe de Filhas.

rota_aérea disse...

Mto obrg pela partilha de um txt tão brilhante...
Qtas vezes caímos (cada um de nós) nessa incorência da cegueira de estar tão embrenhados nas nossas convicções, ideias e lutas pessoais, que falhamos em ver...
Que cada passo nesta terra seja uma luta contra a enorme incoerência em que construímos os nossos dias... e que o movimento feminista possa ter e ser esta elevação de consciência...